12/06/2014

Pudesse Manolo. E pode.

[Carla M. Soares e a leitura de «O Intrínseco de Manolo»]

Pudesse Manolo, e em Cousa Vã só veria mesa e cama e o corpo maduro da sua Maria, depois que lhe calhou ter dinheiro no bolso e nenhuma preocupação senão (re)descobrir os recessos e suores e prazeres do leito conjugal. Pudesse Tonho, e não haveria chouriço nacional que lhe chegasse para os recém descobertos apetites, enquanto Tina, pudesse ela, de feira em feira testaria com igual prazer cuequinhas e feirantes. Arnaldo, pudesse, fingir-se-ia homem de negócios nos negócios fingidos que conhece, desconhecidos de Marília, perdida em si e nos pássaros que a entendem. Alberto, que em terra de cego tem olho e se fez rei, ou quase, pudesse escaparia da porcaria que, porque pode, Idalina deixa tomá-la de prazer – no corpo e na casa, cama e cozinha em orgásmica imundice. Pudessem eles.

Pois podem, em Cousa Vã, com essa letra e com outra. E muito. Algures no intrínseco de Manolo, Manolo a personagem, há tesão pelo corpo de Maria e pela vida. É de amor a história, sem pejo de reconhecê-lo, traduzida em cavalgadas inesperadas no corpo um do outro e em descobertas que idade e hábito já não faziam suspeitar.

"Não lembrava a última vez que, olhos nos olhos e com verdade e perdição, na intimidade escondida das pessoas que nada devem ou temem, escorregara suor pelo mistério de tremuras que lhe dava aquela mulher. Com cheiros, risos e carnes que em mais nenhum poderia haver, cego de paixão e entrega que escondera ao mundo por temor da retaliação à sua condição de macho maduro. Bigodes, vinho e porrada muitos, merdas amaricadas daquelas é que não, pensava. Ou achava que pensava. Ou pensava-se, ou calhando nem tal. O duche, à laia e imagem da azinheira, sulcava caminho, deixava pistas e desenhava momentos." (p.23)

Outros tesões livro fora são de resolver em camas e fora delas, assunto de carnes e cheiros, de texturas e prazeres, coisas da terra que a quem lê arrancam gargalhadas e fazem franzir o sobrolho, na elegância pícara ou na brejeirice com que por vezes nos apanham de surpresa. Cuidado, vós homens, e não tiverdes cuidado, ainda vos vedes tomados num canto qualquer de uma página por Tina, que “atrás de Zé Colmeia vieram umas dezenas mais de parceiros em trotes selvagens, outros Zés, Manéis, Antónios, Alfredos e por aí fora; é mesmo possível que em tanto nome não haja letra do alfabeto que tivesse escapado à sanha persecutória daquele buraco fulminante.” (pág. 69)  

É das coisas pequenas de aldeia, dos diz-que-disse, dos arremedos de vizinhança, das culpas e dos perdões implícitos de quem pertence, apenas porque é Cousavanense. E é de magia, também, a magia pequena e infinda da terra, de azinheiras que são mulheres na voz e se desdobram no consolo nos momentos negros da alma. “Os primeiros dias, as primeiras semanas, haviam sido um retiro de dar dó. Por mais que se esforçasse a velha árvore, por mais que convocasse os deuses e todos os servos da terra, nada mais conseguira do que esbarrar no silêncio de um homem perdido. Cobria-o com a sua sombra, afagava-o em noites frias. Cantava-lhe coisas junto com o vento, dançava para ele com seus ramos e folhas. E nada. Nada de Manolo.” (pág.162)

Eros e Psique, de Jacques-Louis David
imagem: Wikipedia

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