24/07/2014

Saragoça algemou-me

[Pedro Almeida Maia e a leitura de «Todos os Dias São Meus»]

Que dizer de um livro que se devora? De uma história que se consuma na mente do leitor sem qualquer esforço? Ainda mal abrira a capa, e já me deixava seduzir pelo misterioso equídeo em tecido colorido, que Ana Saragoça usa como adorno alfaiado deste Todos os dias são Meus. Saragoça não meteu propriamente Alberto Caeiro no papel, mas corre-lhe nas veias a magia do heterónimo pessoano.

São as primeiras páginas que prendem. As primeiras frases, palavras e interpretações colam-se à fantasia como mel nos dedos. Tal como manda a lei — se é que ela existe —, é impossível abandonar o misterioso acontecimento, revelado mal se abre a porta às hostes. Como apreciador de um bom crime literário — sublinhe-se, no papel — sou irrevogavelmente suspeito, mas daquela irrevogabilidade verdadeira. Saragoça algemou-me ao papel e deitou fora a chave.

fonte: Wikimedia Commons / Klaus with K
Para o leitor que deseja emoção com tradição, este livro arrebatará. Vestir a pele de um investigador mudo dará um êxito de bilheteira no cinema. Verbalizará as perguntas do polícia aos moradores do edifício citadino, mesmo sem as ver no texto, e sentir como se se vestisse de Sherlock Holmes e anotasse todos os testemunhos dos suspeitos. E que suspeitos! A destreza de Ana Saragoça inclui uma sugestionabilidade incrível, tão bem conduzida que permite ao leitor atribuir as características das personagens com apenas duas ou três linhas de narração-desprovida-de-narrador.

Neste estilo, puxando a brasa ao meu favorito, se a escrita de Ana Saragoça não vale ouro, não vale nada. Ana provoca e domina, induz expetativa, curiosidade e envolvência, relata o caos e até o erotismo com graça e muita audácia. Preciso de subir neste elevador. Preciso de mais uma dose.

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